sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

DANO EXISTENCIAL.


Acórdão do processo 0001137-93.2010.5.04.0013 (RO)
Redator: JOSÉ FELIPE LEDUR
Participam: IRIS LIMA DE MORAES, JOSÉ CESÁRIO FIGUEIREDO TEIXEIRA
Data: 16/05/2012   Origem: 13ª Vara do Trabalho de Porto Alegre
Andamentos do processo


PROCESSO: 0001137-93.2010.5.04.0013 AIRR
IDENTIFICAÇÃO
    DESEMBARGADOR JOSÉ FELIPE LEDUR
    Órgão Julgador:  1ª Turma
      Recorrente:  LUCIANE GEÓRGEA DE CASTRO - Adv. Guilherme Corbetta Tonin, Adv. Marcelo Kroeff
      Recorrido:  WMS SUPERMERCADOS DO BRASIL LTDA. - Adv. Mariana Hoerde Freire Barata 
      Origem:  13ª Vara do Trabalho de Porto Alegre
      Prolator da
      Sentença:  JUÍZA ANITA LÜBBE
    EMENTA
    DANO EXISTENCIAL. JORNADA EXTRA EXCEDENTE DO LIMITE LEGAL DE TOLERÂNCIA. DIREITOS FUNDAMENTAIS. danoexistencial é uma espécie de dano imaterial, mediante o qual, no caso das relações de trabalho, o trabalhador sofre danos/limitações em relação à sua vida fora do ambiente de trabalho em razão de condutas ilícitas praticadas pelo tomador do trabalho. Havendo a prestação habitual de trabalho em jornadas extras excedentes do limite legal relativo à quantidade de horas extras, resta configurado dano à existência, dada a violação de direitos fundamentais do trabalho que traduzem decisão jurídico-objetiva de valor de nossa Constituição. Do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana decorre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade do trabalhador, do qual constitui projeção o direito ao desenvolvimento profissional, situação que exige condições dignas de trabalho e observância dos direitos fundamentais também pelos empregadores (eficácia horizontal dos direitos fundamentais). Recurso provido.  
    ACÓRDÃO
    por maioria, vencido em parte o Juiz José Cesário Figueiredo Teixeira, DAR PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO ORDINÁRIO DA RECLAMANTE para condenar a reclamada ao pagamento de indenização por dano imaterial/existencial no valor de 10.000,00 (dez mil reais), atualizados a partir desta data e juros a partir do ajuizamento (Súmula 362 do STJ). Valor da condenação que se arbitra em 10.000,00 (dez mil reais) e custas de R$ 200,00 (duzentos reais), pela reclamada.  
    RELATÓRIO
    Não conformada com a sentença de procedência parcial das fls. 112-5, a reclamante interpõe recurso ordinário. Em suas razões das fls. 118-31, busca a reforma do julgado quanto ao dano existencial.
    Sem contrarrazões, os autos são remetidos a este Tribunal para julgamento.  
    VOTO RELATOR
    DESEMBARGADOR JOSÉ FELIPE LEDUR:  
    RECURSO ORDINÁRIO DA RECLAMANTE
    DANO EXISTENCIAL
    A julgadora de origem julgou improcedente a pretensão.  Sinalou que a condenação da reclamada em outra demanda ao pagamento das horas extras efetivamente laboradas pela reclamante não é prova suficiente para que haja condenação quanto ao tópico. Acrescentou que sequer há prova nestes autos das alegadas crises depressivas e ansiosas. Considerou que os pedidos da reclamante foram confusos e que a prova oral não demonstra o alegado dano existencial.
    A reclamante recorre. Assevera que trabalhava em jornada de 12 horas em seis dias por semana, com intervalo de 30 minutos, por um período de três anos e meio, o que demonstra o pouco tempo de sobra para os demais compromissos particulares, dentre eles o convívio familiar. Refere a previsão constitucional do direito ao lazer, ao convívio social com a família, à saúde, à dignidade, dentre outros. Cita o art. 149 do Código Penal. Alega que as extensas jornadas de trabalho não limitavam apenas o convívio familiar, mas também prejudicavam a sua saúde, uma vez que passou a sofrer de depressão e estresse. Sustenta que a reclamada acaba com a saúde física e mental dos seus empregados, tanto no Brasil como no exterior, em razão da exigência de trabalho em jornadas excessivas sem o pagamento das horas extras. Entende que restou demonstrada a ocorrência de ato ilícito, dano a bens extrapatrimoniais e nexo causal. Em relação ao valor da indenização, sustenta que deve ser no mesmo valor que a reclamada teve de vantagem quando ignorou as suas necessidades básicas como ser humano. Pretende a aplicação das regras cíveis em relação à correção monetária e aos juros.
    À análise.
    A reclamante trabalhou para a reclamada de 01-01-99 a 13-10-08, exercendo por último a função de adjunto.
    Nos autos do processo nº 00190-2009-014-04-00-2 foram deferidas à autora, a partir de 01-4-05, horas extras excedentes da 8ª diária e da 44ª semanal. Foi reconhecida jornada de 12 horas por dia, com intervalo de 30 minutos e com uma folga semanal (fls. 31-2 e 34-5).
    Em relação ao denominado "dano existencial", transcreve-se parte da sentença nos autos do processo 0000105-14.2011.5.04.0241 pela Juíza Lina Gorczevski, a qual se vale de artigo da autoria de Hidemberg Alves da Frota:
      Segundo a doutrina, ainda escassa a respeito do tema - razão pela qual o dano existencial é freqüentemente confundido com dano moral -, o danoexistencial é uma das espécies do gênero dano imaterial, e apresenta-se sob duas formas: "dano ao projeto de vida" e "dano a vida de relações".
      O "dano ao projeto de vida atinge" a liberdade de escolha, frustrando o projeto de vida que a pessoa elaborou para sua realização como ser humano, atinge, pois "as expectativas de desenvolvimento pessoal, profissional e familiar da vítima, incidindo sobre sua liberdade de escolher o seu próprio destino", constituindo uma "ameaça ao sentido que a pessoa atribui à existência, ao sentido espiritual da vida",  está, pois, mais ligado "às alterações de caráter não pecuniário nas condições de existência, no curso normal da vida da pessoa e de sua família, sendo, pois reconhecido que a violação aos direitos humanos, por vezes, impedem a pessoa de desenvolver suas aspirações e vocações, acarretando frustrações de difícil superação". Já o "dano de relação" diz respeito àquele prejuízo causado "ao conjunto de relações interpessoais, nos mais diversos ambientes e contextos, que permite ao ser humano estabelecer a sua história vivencial e se desenvolver de forma ampla e saudável, ao comungar com seus pares a experiência humana, compartilhando pensamentos, sentimentos, emoções, hábitos, reflexões, aspirações, atividades e afinidades, e crescendo, por meio do contato contínuo (processo de diálogo e de dialética) em torno da diversidade de ideologias, opiniões, mentalidades, comportamentos, culturas e valores ínsitos à humanidade (fl. 162)."
    dano existencial, portanto, é espécie de dano imaterial, mediante o qual, no caso das relações de trabalho, o trabalhador sofre dano/limitações em relação à sua vida fora do ambiente de trabalho em razão de condutas ilícitas praticadas pelo tomador do trabalho. No presente caso, a reclamante alega que as jornadas excessivas lhe ocasionaram dano quanto ao seu convívio familiar, à sua saúde, aos seus projetos de vida, à sua dignidade etc. A configuração do dano, em regra, deve ser comprovado de forma inequívoca, salvo nos casos de dano in re ipsa.
    A testemunha Mauro Sérgio, ouvida como informante, refere fatos que não são capazes de demonstrar a existência ou não de dano existencial decorrente das jornadas cumpridas pela autora.  O referido informante foi namorado da autora no período de 2005 a 2007 e limita-se a informar que tem conhecimento de que a autora saía em torno das 2h da manhã, bem como que a autora costumava ter uma folga por mês. Refere, ainda, alguns encontros familiares e fatos ocorridos no início do relacionamento (fls. 100-1).
    Embora a prova oral não apresente elementos capazes de solucionar a lide e a prestação de horas extras não represente, em regra, dano imaterial/existencial, o trabalho prestado em jornadas que excedem habitualmente o limite legal de duas horas extras diárias, tido como parâmetro tolerável, representa afronta aos direitos fundamentais e aviltamento da trabalhadora, o que autoriza a conclusão de ocorrência de dano in re ipsa.
    De fato, os direitos fundamentais previstos no art. 7º da Constituição de 1988, dentre eles o disposto no inciso XIII (duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho) e no inciso XXII (redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança) são concreções de valores e normas de caráter principiológico e traduzem decisões jurídico-objetivas de valor da Constituição. Referidos valores e princípios encontram-se,  dentre outros, no Preâmbulo (e.g., a asseguração do exercício dos direitos sociais, da liberdade e do bem-estar), no art. 1º, III e IV (dignidade da pessoa humana os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa) e no rol dos direitos sociais elencados no art. 6º (e.g., o direito à saúde, ao trabalho, ao lazer e à segurança). Do princípio da dignidade da pessoa humana, núcleo dos direitos fundamentais em geral, decorre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade do trabalhador, do que constitui projeção o desenvolvimento profissional mencionado no art. 5º, XIII, da Constituição, situação que exige condições dignas de trabalho e observância dos direitos fundamentais assegurados aos trabalhadores em particular. Finalmente, esses valores e princípios vinculam não só o Estado (eficácia vertical dos direitos fundamentais), mas também o empregador/organização econômica (eficácia horizontal dos direitos fundamentais ou eficácia em face dos particulares).
    Especificamente no que diz respeito ao direito à duração do trabalho normal não superior a oito horas deriva a conclusão de que o trabalho em condições anormais (em jornada extraordinária) deve atender os parâmetros em que a legislação infraconstitucional estabelece a restrição à garantia jusfundamental. Consoante destacado, é incontroverso que a reclamada não atendeu a esse limite. Ao contrário, em conduta que revela ilicitude, converteu em ordinário o que é admissível excepcionalmente, interferindo indevidamente na esfera existencial da sua empregada, fato que dispensa demonstração. Seu proceder contraria decisão jurídico-objetiva de valor que emana dos direitos fundamentais do trabalho acima destacados.
    A indenização pelo dano existencial sofrido pela reclamante em razão da conduta da empresa-ré é de difícil mensuração. Para a fixação do quantum indenizatório é importante que se levantem certos parâmetros, visto que inexiste critério previsto no ordenamento jurídico. A condenação em reparação de dano existencialdeve ser fixada considerando-se a dimensão do dano e a capacidade patrimonial do lesante. Para surtir um efeito pedagógico e econômico, o valor fixado deve representar um acréscimo considerável nas despesas da empresa, desestimulando a reincidência, mas que preserve a sua saúde econômica. Como visto, a reclamante teve a sua vida privada prejudicada em razão da exigência de jornadas excessivas, o que representa afronta a direitos fundamentais. Ademais, a reclamada é empresa de grande porte e com considerável capacidade econômica, o que se tem conhecimento em razão do julgamento de diversas outras demandas envolvendo a mesma empresa. Tem-se por razoável arbitrar a indenização por dano existencial no valor de duas remunerações para cada ano em que a autora trabalhou em jornada de 12 horas. Uma vez que não se tem notícia nos autos da última remuneração percebida pela reclamante e que em abril de 2005 a remuneração era de R$ 700,00, considera-se razoável atualizar o referido valor para R$ 1.500,00. Assim, considerando, ainda, que a autora trabalhou cerca de três anos e meio na referida jornada, fixa-se a indenização em R$ 10.000,00 (dez mil reais).
    Dá-se provimento ao recurso ordinário da reclamante para condenar a reclamada ao pagamento de indenização por dano existencial no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), atualizados a partir desta data e com juros a partir do ajuizamento (Súmula 362 do STJ). 
    DESEMBARGADORA IRIS LIMA DE MORAES:
    DANO EXISTENCIAL
    A limitação à duração do trabalho, prevista no inciso XIII da Constituição Federal,  é princípio universal de tutela ao trabalho humano. Por preservar a higidez física e mental do trabalhador  e permitir seu pleno desenvolvimento individual, social e familiar, a jornada de 08 horas e 44 horas semanais é o limite máximo que o Direito Interno e também  Internacional consideram aceitável. Veja-se que de acordo com nota técnica do DIESE na longínqua  década de 1920, indústrias da Europa e dos Estados Unidos já haviam adotado a jornada semanal de 40 horas (OIT, 1967).  Outras razões, não menos relevantes se somaram à necessidade de se restringir a duração diária e semanal do trabalho.  Irretorquível, portanto, que a exigência de trabalho em jornada de 12 horas semanais, por vários anos, constitui grave violação a direitos  fundamentais inscritos em diversas passagens da Constituição Federal, notadamente no artigo 6, por  frustrar, impedir, não raro de maneira irremediável, o convívio familiar do trabalhador, impedir seu progresso intelectual e pessoal, excluí-lo de atividades de lazer, violar direito à saúde, entre outras restrições ao pleno desenvolvimento interpessoal do ser humano. O dano, portanto, decorre do próprio fato e, por assim ser, é passível de reparação. Acompanho o voto do Senhor Relator.  
    JUIZ CONVOCADO JOSÉ CESÁRIO FIGUEIREDO TEIXEIRA:
    DANO EXISTENCIAL
    Divirjo do voto condutor, no tópico.
    Como aponta a julgadora de origem, o dano existencial é traduzido pela doutrina e jurisprudência como um dano que confere evidente sacrifício, prejuízo permanente aos meios de existência, de vida, de determinada pessoa. Essa situação não se verifica no caso dos autos, pois não há qualquer prova de que a reclamante tenha sofrido crises depressivas e ansiosas em decorrência das condições de trabalho impostas pela demandada. Assim, na linha da sentença, entendo que as extensas jornadas cumpridas pela reclamante e as declarações por ela feita acerca de sua rotina doméstica não são suficientes para configurar o danoexistencial alegado, razão pela qual negaria provimento ao recurso. 
    Ademais, concessa venia de entendimentos em oposto, depreendo que a reiterada apresentação desse pleito - indenização por dano existencial - configura no mais das vezes uma tentativa ou artifício de obter por vias transversas  que não seria alcançado mediante alegação de dano moral, exatamente porque não configurados os elementos essenciais para tanto.
    Nego provimento e mantenho a sentença no particular.

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